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domingo, 15 de abril de 2012

Marco Aurélio Mello:Bem-vindo ao inferno

Neste domingo, às 21h, o Domingo Espetacular,
da TV Record, apresenta uma reportagem
especialíssima sobre crack, como nunca você viu:
Dr. Marcelo – O Diário do Inferno. Seu cenário, a
região do bairro da Luz, que ficou conhecida
como Cracolândia.
Esqueça os lugares-comuns das matérias já feitas
sobre o tema: câmeras escondidas flagrando
"doidões", usuários tratados como vagabundos,
bandidos, criminosos, rostos e vozes camuflados,
para não serem identificados…
Em vez disso, dependentes químicos de crack há
anos, com nome, sobrenome, à luz do dia,
relatando as atrocidades a que são submetidos
por policiais civis e militares e guardas
metropolitanos. Também falando, com lucidez
gritante, do descaso, preconceito e desumanidade
com que são tratados inclusive por profissionais
de saúde, incapazes de perceber a tragédia
humana, social e sanitária dessas pessoas,
tratadas pior do que bichos.
O fio condutor é o diário do doutor Marcelo dos
Santos Clemente. Um jovem de origem humilde,
pai alcoólatra e que, aos 14 anos de idade, viu sua
mãe ser tirada de casa numa camisa-de-força,
para ser internada num manicômio. Aos 21,
entrou na faculdade de medicina mais concorrida
do Brasil – a USP. Aos 26, formou-se médico e
escolheu trabalhar diretamente com usuários de
crack, num dos lugares mais degradados da
cidade de São, a Cracolândia. Um verdadeiro
inferno. Trabalhou aí de agosto de 2010 a abril de
2011. Morreu, subitamente, aos 27 anos. Era
casado com Natasha, também estudante de
medicina, e pai do Laos, um garotinho hoje com 5
anos de idade.
Uma história ímpar de um médico que fez
realmente opção pelos seus pacientes. Uma
denúncia grave de dois excelentes e seriíssimos
jornalistas — Marco Aurélio Mello e Gustavo Costa
— que precisa ser investigada. A reportagem tem
29 minutos. Depois de assistir à versão completa,
com 38 minutos, conversei com Marco sobre os
caminhos percorridos pela dupla para retratar
fielmente todo esse inferno e o que aconteceu
com o doutor Marcelo.
Viomundo – A reportagem de vocês é diferente de
tudo o que já foi feito sobre crack. Como nasceu
essa ideia?
Marco Aurélio Mello – Começou em novembro do
ano passado. O Ministério Público da Infância e
Juventude estava querendo montar uma tenda na
Cracolândia, para tentar resgatar crianças e
adolescentes, por meio de internação voluntária.
Aí, o Gustavo foi fazer uma caminhada com um
deles lá, numa sexta-feira, dez da noite, e ficou
impressionado. "Um feirão a céu aberto, umas 2
mil pessoas", ele chegou me contando. "Fumam
na sua frente, ficam doidões na sua frente, nunca
vi nada igual."
Nesse dia, ele ouviu pessoas falarem de um
médico chamado Marcelo que trabalhava lá. E foi
atrás da história. Entrou em contato com posto de
saúde da região, que informou que o médico não
trabalhava mais ali, porque tinha morrido em abril
de 2011. O Gustavo, com a ajuda de um
enfermeiro que fazia parte da equipe de saúde,
conseguiu chegar à Natasha, a mulher do Marcelo.
A Natasha foi logo dizendo: "A gente não gosta de
jornalista… o Marcelo sempre foi muito resistente
a jornalistas, porque chegam lá com câmeras
escondidas, fazem umas imagens, criminalizam
todo mundo, fica parecendo que ali é tudo um
monte de bandido, criminoso. Não é só isso que
tem ali dentro. Tem gente".
O Gustavo sugeriu então que ela conhecesse
melhor o nosso trabalho. Ficou tentando
convencê-la a encontrá-lo para conversarem
pessoalmente. Uns 15 dias depois ele conseguiu.
Os dois se encontraram numa padaria próxima à
casa dela: "Está bom, eu converso com vocês, só
não sei se quero gravar".
Uns dias depois Gustavo voltou a se encontrar
com a Natasha na mesma padaria. Dessa vez, fui
junto. Mostramos a ela que seria importante
contar essa história. Dissemos que iríamos contá-
la da forma menos sensacionalista possível, que
seria mais documental. Dissemos que tínhamos
plano de ouvir o máximo de pessoas, que
queríamos apresentar um mosaico de
depoimentos, que iríamos nos basear no próprio
diário do Marcelo… Aí, ela cedeu o diário para
gente. Um calhamaço.
Viomundo – O que o doutor Marcelo conta nesse
diário?
Marco Aurélio Mello – Ele relata as atrocidades
cometidas por policiais militares, civis e guardas
metropolitanos na região da Luz, mais conhecida
por Cracolândia. Retrata também a situação
desumana dos dependentes químicos que vivem
precariamente no centro da cidade mais rica da
América Latina. Infelizmente, o médico não viveu a
tempo de levar suas queixas ao conhecimento das
autoridades em Brasília.
Viomundo – A Natasha fez algum tipo de
exigência?
Marco Aurélio Mello – Ela deixou claro desde o
início que não queria que ele fosse mistificado
como herói, porque ele mesmo não aceitaria isso.
Queria que a história dele fosse contada como era
mesmo. E nós assumimos esse compromisso com
ela.
Por exemplo, tem um documento de próprio
punho do Marcelo para a Natasha, onde ele diz
que tentou três vezes o suicídio, recorrendo a
remédios. Uma delas nós não conseguimos
confirmar, pois só a avó dele testemunhou e ela
não está mais viva.
Por isso nós relatamos apenas duas. A primeira,
quando tinha 12 anos de idade. Tomou uma caixa
de remédio que a mãe dele usava para ver o que
acontecia com ele. No documento que escreveu
para a Natasha, faz uma linha do tempo sobre as
coisas mais importantes na vida dele. E quando
ele tinha 12 anos o que considerou mais
importante foi ter tomado a caixa de remédio. Ele
diz: "Tento o suicídio". Dois anos depois, viu a
mãe sair de casa numa camisa-de-força, para
internação psiquiátrica.
A segunda tentativa de suicídio foi quando estava
no primeiro ano da faculdade de Medicina. Ele
combinou lítio, medicamento usado para
tratamento de transtorno bipolar, com LSD – uma
droga sintética muito usada pelos hippies no fim
dos anos sessenta – e foi parar no pronto-
socorro. O serviço médico da universidade
chamou a tia dele, que é com quem morava, e
depois disso passou a ser acompanhado. A tia e
Natasha se revezavam para evitar que ele tentasse
se suicidar, de novo. Á noite, a tia vigiava, durante
o dia, a Natasha.
Viomundo – O doutor Marcelo era usuário de
crack?
Marco Aurélio Mello – A mulher garante que não.
E, de tudo o que apuramos, é pouco provável que
tenha sequer experimentado.
Viomundo – A Natasha é médica?
Marco Aurélio Mello – Sim. Atualmente faz
Residência Médica na Universidade Federal do
ABC.
Viomundo – Quando vocês começaram a tocar
mesmo a matéria?
Marco Aurélio Mello – No início de janeiro. O
primeiro passo foi ouvir a Natasha. Fomos para a
cada dela, ficamos lá o dia todo. Gravamos o seu
depoimento, filmamos tudo o que tinha por lá:
livros, fotos… No dia seguinte, o Gustavo foi com a
equipe para a casa da tia Ana, que foi quem o
acolheu, quando Marcelo decidiu fazer medicina.
Ela mora pertinho da Faculdade, atrás da MTV,
onde antes funcionava a extinta TV Tupi. Na casa
da tia, reviramos e copiamos tudo também:
apontamentos, livros, fotos, filmes caseiros da
família…
Depois que gravamos com a tia, fomos para a
Cracolândia. A Prefeitura tinha invadido a área e
estava começando a limpar do local. Quando
entramos nas ruínas, vimos que tudo aquilo que o
Marcelo dizia no diário estava ali, era real mesmo.
Estava ali todo o cenário descrito no diário do
Marcelo. A história estava inteirinha na nossa
frente: a entrada, os cubículos, os telhados…
Aí, pedimos ao Giba (Antonio Gilberto) que
gravasse tudo o que pudesse até o sol cair,
porque era um material inédito e dali a pouco iria
desaparecer, a Prefeitura ia dar fim a tudo, como,
de fato, acabou acontecendo. Gravamos o dia
inteirinho. E já marcamos pra três dias depois
para sair gravando com a família dentro das
ruínas.
Fizemos uma imersão. Quando um não estava
online, o outro estava, trocando e-mail,
telefonando, conversando com as pessoas,
levantando todo o material. Desde o início, o
Gustavo, insistentemente, ficou tentando
convencer os colegas da faculdade a conversar
com a gente. Três semanas depois conseguimos
levar todos para um estacionamento abandonado,
onde fizemos um set de filmagem e gravamos até
a meia-noite os depoimentos maravilhosos deles.
Viomundo – Notei que não há ninguém da
Secretaria da Saúde falando. Por quê? E o
enfermeiro que ajudou a localizar a mulher do
Marcelo?
Marco Aurélio Mello — Esse enfermeiro foi muito
legal, muito solícito. Mas por uma razão que a
gente não consegue explicar, ele não quis gravar a
entrevista. A gente fez, via assessoria de imprensa,
gestão na Secretaria da Saúde do município, para
ouvir funcionários que atuavam no CAPs (Centro
de Atenção Psicossocial), onde o Marcelo
trabalhava. A Secretaria de Saúde disse que os
funcionários por livre e espontânea vontade
preferiram não nos dar entrevista.
Viomundo – Como vocês conseguiram com que
usuários de crack dessem entrevista de cara limpa,
com nome, sobrenome?
Marco Aurélio Mello – Acho que o Gustavo tem
um talento nato para isso. Ele entrou em todos os
lugares. Foi conversando com as pessoas, dizendo
o que ele realmente queria fazer, tentando
convencê-las a contar a história de alguém que foi
importante para elas e ganhando a confiança.
Quando você trata a pessoa como ser humano,
com dignidade, a pessoa não tem por que se
omitir. É uma questão de química. Ele acabou
convencendo o pessoal a falar. E assim foi.
Viomundo – O Marcelo morreu do quê?
Marco Aurélio Mello – A gente investigou muito
isso, porque achou que tinha que saber a causa
da morte dele, mesmo que não fosse dar na
matéria. Aí, três hipóteses foram consideradas:
suicídio, homicídio e morte natural.
Desde criança, o Marcelo tinha uma atração
enorme por remédios. Vira e mexe, ele fazia
experiências com medicamentos, como atestam
os próprios colegas de faculdade. Ele gostava de
saber qual era o efeito da droga no
organismo. Mas ele gostava de fazer essa
observação in loco. Ele era a própria cobaia. Na
faculdade ele fez muito isso.
Agora, ele também tinha inimigos o bastante para
desejarem a morte dele. É fato também que ele
era uma bomba ambulante para explodir a
qualquer momento, embora tivesse apenas 27
anos: estava acima do peso, comia coxinha no
almoço e pizza no jantar, tinha apnéia obstrutiva
do sono, não dormia mais do que quatro horas
por noite, vivia à base de energéticos e cigarro,
tomava remédio para dormir, remédio para
hipertensão arterial, pois era hipertenso… Ele
ficou nessa loucura 7 meses.
Viomundo – Quem eram os inimigos? Polícia?
Traficantes?
Marco Aurélio Mello – No diário dele existem
alguns relatórios que mostram situações difíceis
que ele enfrentou. Por exemplo, houve um show
na Sala São Paulo, que reuniu autoridades. Nesse
dia à tarde, a polícia foi lá e desceu "porrada" em
todo mundo. Ele produziu um relatório sobre isso.
E mandou pra todo mundo, contando o que havia
acontecido. Quando a Guarda Metropolitana fazia
incursões para intimidar os dependentes, ele fazia
relatório. Quando, por alguma razão, o trabalho
dele era obstruído por força policial, ele metia um
relatório.
Os policiais da área não gostavam dele de jeito
nenhum. Achavam até que ele colaborava com os
traficantes, ajudando a levar droga, porque
entrava em todos os buracos para tratar os
doentes, o que nunca ninguém fez. Os policiais
desconfiavam um pouco dele.
O pessoal da saúde também tinha reservas em
relação a ele, pois ele partia para cima, mesmo.
Criava caso no posto de saúde, quando não tinha
remédio, faltava material para sutura ele mandava
buscar com os colegas na Santa Casa, no HC…
Enfim, fazia relatório, escrachava mesmo a
situação. Quando viu que não tinha resposta por
parte da Prefeitura, ele procurou o governo do
Estado. Também não obteve resposta. Escreveu
para a Presidência da República, que encaminhou
a correspondência à Senad (Secretaria acional de
Políticas sobre Drogas), que é ligada ao Ministério
da Justiça. Ele ia ter uma audiência no dia 11 de
maio de 2011, morreu um mês antes.
Viomundo — Para quem ele mandava os
relatórios?
Marco Aurélio Mello – Para a Secretaria da Saúde
do município, para a Subprefeitura da região da
Luz…
Viomundo – A esposa dele o que acha?
Marco Aurélio Mello – A Natasha e outras pessoas
próximas não acreditam em suicídio, não. Depois
que ele morreu, ela foi investigar tudo isso com os
professores e chegaram à conclusão de que o
Marcelo teve parada cardiorrespiratória devido a
edema pulmonar. Dias antes de morrer, ele estava
se queixando de dor na perna. Provavelmente era
um coágulo que se desprendeu e foi para o
pulmão. A Natasha encontrou-o às 6 da manhã de
sábado, com a boca espumando. Segundo os
professores dela, uma característica clássica de
parada cardiorrespiratória por edema pulmonar.
Viomundo – E agora?
Marco Aurélio Mello – O que queremos é que as
denúncias do Dr. Marcelo sejam investigadas e
seus responsáveis punidos. É o que o Marcelo
gostaria que acontecesse.

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