O monitor mostra uma senhora de
cabelos grisalhos disparando ironia
para a atendente de um laboratório
de análises clínicas: "Essa coisa de
melhor idade é pra vender pacote de
turismo pra velho". "Corta!
Excelente", grita o diretor Jorge
Furtado.
*
A fala da personagem dona Picucha
em "Doce de Mãe", especial de fim de
ano da Globo, cabe perfeitamente na
boca de sua intérprete. Aos 83 anos,
Fernanda Montenegro endossa o
texto. "Não me diga que ter de 80
para 90 anos é a melhor idade. É
demagogia", diz ela à repórter Eliane
Trindade.
*
Senhora do seu tempo, a atriz põe na
balança os prós e contras dos muitos
anos que carrega. "O mais difícil é
saber que você está na fase
definitivamente conclusiva da vida. É
melhor encarar."
A finitude bate à porta a cada perda,
a começar pelo companheiro de 60
anos de vida, Fernando Torres. "A
coisa mais dolorosa pela qual tenho
passado é ver a minha geração
morrer. Nos últimos cinco anos,
morreram, além dele, Paulo Autran,
Raul Cortez, Gianfrancesco Guarnieri,
Renato Consorte, Sérgio Viotti, Sérgio
Brito, Ítalo Rossi e Millôr Fernandes."
*
Ela se emociona ao concluir: "Você
olha em volta e a sua memória está
ligada a todo esse mundo que se vai.
É muito forte". Na lista de baixas
recentes, tem ainda Hebe Camargo
que, como ela, nasceu em 1929.
"Vivemos o mesmo período da
história. Quem substitui? Ninguém."
*
Mora só desde que ficou viúva, em
2008. "À noite, eu fico sozinha, não
tenho empregada nem dama de
companhia." Não se habituou à
ausência de Fernando. "É estranho.
Ainda acho estranho, mas não tem
solução."
*
Teme a solidão? A resposta requer
tempo: "Essa palavra é tão forte"¦ Eu
gosto de estar só. Não que goste de
solidão. A minha não é vazia".
*
A exemplo de outros "oitentões"
atuais, a atriz é bastante ativa.
"Tenho uma vida intensa, viajo muito
a trabalho." Acabou de filmar o longa
"O Tempo e O Vento", também no
Sul, e já anda às voltas com a nova
peça, um texto sobre a vida de
Nelson Rodrigues que pretende levar
aos palcos em 2013.
*
"Mas sinto que meus filhos se
preocupam", admite. Ela é mãe da
atriz Fernanda Torres, 47, e do
cineasta Cláudio Torres, 49. "Quando
toca o telefone e não atendo logo,
um telefona pro outro, que telefona
pra produtora, que telefona pro
secretário. E eu só estava no banho.
Como amor de filho, isso me toca."
*
Dona Picucha foi escrita para a atriz.
Os quatro filhos da personagem se
veem às voltas com o dilema: Quem
vai cuidar da mamãe? "É inevitável. A
velhice chega, os filhos têm suas
vidas, suas casas e suas
necessidades. Há uma preocupação
de que é preciso dar atenção à
famosa terceira idade. É um
desassossego para os dois lados."
*
O drama é contado com humor. No
set, a prole de Pichuca --os atores
Marco Ricca, Louise Cardoso, Mariana
Lima e Matheus Nachtergaele--
discute um revezamento para cuidar
da idosa. Estão no hospital, onde a
mãe foi parar após uma bebedeira.
"É uma coisa bem rara na idade dela:
um porrão", explica a primogênita
vivida por Louise. A cena vai ao ar no
dia 27.
*
"Os quatro filhos da Picucha não são
diferentes de nós. Eles têm que levar
a própria vida, que não deixa mais
espaço para se cuidar dos velhos",
constata Matheus.
*
O diretor conta que o papel foi
escrito para Fernanda. "É uma
mulher da idade dela, que não fez
plástica para tentar ficar 'forever
young'." Fernanda agradece: "Picucha
é uma mãe e avó que aceita, com
humor, o tempo vivido".
*
Nada de luz especial ou maquiagem
para atenuar marcas na tela. "Do
ponto de vista interpretativo é um
relax. Os empapuçados dos meus
olhos ajudam a personagem." Em um
comercial de banco em 2010, a atriz
foi rejuvenescida com Photoshop.Na
vida real, nunca pensou em fazer
lifting. "É de temperamento. Se você
quiser tomar banhos de cirurgias
plásticas, ótimo. Há quem fique feliz
em ir se esticando pela vida, às vezes,
com resultados extraordinários. Perdi
esse bonde. Quem me quiser, tem
que me querer com meus papos,
minhas rugas."
*
Nas filmagens de "O Tempo e O
Vento" embranqueceu o cabelo. "Se
parasse de representar, e eu não
penso nisso, deixaria meu cabelo
branco sem problema. Se me der na
veneta, não pinto mais."
*
Da mesma forma que não idealiza a
velhice, não o faz com a infância.
"Criança sofre muito. É todo um
processo de civilização, de coerção e
de enquadramento em cima delas. E
isso é uma agressão violenta", diz.
"Quando ouço alguém dizer que a
infância foi a parte mais feliz de sua
vida, olho com muita desconfiança.
Deve ter sido tão terrível que nem se
lembra."
*
A avó Fernanda é presente, quando
possível e sem culpas, na vida dos
três netos. "Estamos juntos nos
aniversários, aos domingos, quando
se consegue. "
*
Não tem e-mail. "Ainda gosto de
escrever à mão. Não me iniciei nesse
mundo de Facebook, internet. Acho
fantástico. As fronteiras acabaram. É
o ser humano solto, indomável." Usa
minimamente o celular. "Se ele puder
ficar desligado, prefiro."
*
Sem saudosismo. "Não vivo no
passado." É só elogios à nova versão
de "Guerra dos Sexos", onde aparece
em retratos ao lado de Paulo Autran.
"Foi a única vez em que trabalhamos
juntos, uma dupla que se fez muito
feliz." Ela ressalta não se tratar de
"remake". "É outra brincadeira. O
elenco é espetacular."
*
Fala com orgulho da geração de sua
filha. "É um grupo de atrizes
extremamente talentosas e
poderosas, com uma folha de
serviços de quem não está brincando
na vida. Isso dá uma visão
imorredoura da profissão."
*
Volta a se emocionar ao falar de
legado: "Nada é mais importante do
que meus filhos e netos. Eles
justificam a minha vida. Algo meu vai
estar lá no fim deste século. Se eles
procriarem, parte minha restará
pelos milênios afora. Penso muito
nessa cadeia de seres que foram se
sucedendo e chegaram até mim. Não
parei a corrente".
*
Para encerrar a conversa no café do
lobby do hotel em Porto Alegre, onde
se hospedou nas três semanas de
gravação, ela recusa o título de "a
grande dama do teatro e da tevê".
"Isso é bobagem, um resquício do
século 19. Como estamos no século
21, e já se passou um século inteiro,
deram uma acalmada nisso."
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