Sites parceiros

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Fernanda Montenegro fala da dor de ver sua geração morrer e critica idealização da infância



O monitor mostra uma senhora de

cabelos grisalhos disparando ironia

para a atendente de um laboratório

de análises clínicas: "Essa coisa de

melhor idade é pra vender pacote de

turismo pra velho". "Corta!

Excelente", grita o diretor Jorge

Furtado.

*

A fala da personagem dona Picucha

em "Doce de Mãe", especial de fim de

ano da Globo, cabe perfeitamente na

boca de sua intérprete. Aos 83 anos,

Fernanda Montenegro endossa o

texto. "Não me diga que ter de 80

para 90 anos é a melhor idade. É

demagogia", diz ela à repórter Eliane

Trindade.

*

Senhora do seu tempo, a atriz põe na

balança os prós e contras dos muitos

anos que carrega. "O mais difícil é

saber que você está na fase

definitivamente conclusiva da vida. É

melhor encarar."

A finitude bate à porta a cada perda,

a começar pelo companheiro de 60

anos de vida, Fernando Torres. "A

coisa mais dolorosa pela qual tenho

passado é ver a minha geração

morrer. Nos últimos cinco anos,

morreram, além dele, Paulo Autran,

Raul Cortez, Gianfrancesco Guarnieri,

Renato Consorte, Sérgio Viotti, Sérgio

Brito, Ítalo Rossi e Millôr Fernandes."

*

Ela se emociona ao concluir: "Você

olha em volta e a sua memória está

ligada a todo esse mundo que se vai.

É muito forte". Na lista de baixas

recentes, tem ainda Hebe Camargo

que, como ela, nasceu em 1929.

"Vivemos o mesmo período da

história. Quem substitui? Ninguém."

*

Mora só desde que ficou viúva, em

2008. "À noite, eu fico sozinha, não

tenho empregada nem dama de

companhia." Não se habituou à

ausência de Fernando. "É estranho.

Ainda acho estranho, mas não tem

solução."

*

Teme a solidão? A resposta requer

tempo: "Essa palavra é tão forte"¦ Eu

gosto de estar só. Não que goste de

solidão. A minha não é vazia".

*

A exemplo de outros "oitentões"

atuais, a atriz é bastante ativa.

"Tenho uma vida intensa, viajo muito

a trabalho." Acabou de filmar o longa

"O Tempo e O Vento", também no

Sul, e já anda às voltas com a nova

peça, um texto sobre a vida de

Nelson Rodrigues que pretende levar

aos palcos em 2013.

*

"Mas sinto que meus filhos se

preocupam", admite. Ela é mãe da

atriz Fernanda Torres, 47, e do

cineasta Cláudio Torres, 49. "Quando

toca o telefone e não atendo logo,

um telefona pro outro, que telefona

pra produtora, que telefona pro

secretário. E eu só estava no banho.

Como amor de filho, isso me toca."

*

Dona Picucha foi escrita para a atriz.

Os quatro filhos da personagem se

veem às voltas com o dilema: Quem

vai cuidar da mamãe? "É inevitável. A

velhice chega, os filhos têm suas

vidas, suas casas e suas

necessidades. Há uma preocupação

de que é preciso dar atenção à

famosa terceira idade. É um

desassossego para os dois lados."

*

O drama é contado com humor. No

set, a prole de Pichuca --os atores

Marco Ricca, Louise Cardoso, Mariana

Lima e Matheus Nachtergaele--

discute um revezamento para cuidar

da idosa. Estão no hospital, onde a

mãe foi parar após uma bebedeira.

"É uma coisa bem rara na idade dela:

um porrão", explica a primogênita

vivida por Louise. A cena vai ao ar no

dia 27.

*

"Os quatro filhos da Picucha não são

diferentes de nós. Eles têm que levar

a própria vida, que não deixa mais

espaço para se cuidar dos velhos",

constata Matheus.

*

O diretor conta que o papel foi

escrito para Fernanda. "É uma

mulher da idade dela, que não fez

plástica para tentar ficar 'forever

young'." Fernanda agradece: "Picucha

é uma mãe e avó que aceita, com

humor, o tempo vivido".

*

Nada de luz especial ou maquiagem

para atenuar marcas na tela. "Do

ponto de vista interpretativo é um

relax. Os empapuçados dos meus

olhos ajudam a personagem." Em um

comercial de banco em 2010, a atriz

foi rejuvenescida com Photoshop.Na

vida real, nunca pensou em fazer

lifting. "É de temperamento. Se você

quiser tomar banhos de cirurgias

plásticas, ótimo. Há quem fique feliz

em ir se esticando pela vida, às vezes,

com resultados extraordinários. Perdi

esse bonde. Quem me quiser, tem

que me querer com meus papos,

minhas rugas."

*

Nas filmagens de "O Tempo e O

Vento" embranqueceu o cabelo. "Se

parasse de representar, e eu não

penso nisso, deixaria meu cabelo

branco sem problema. Se me der na

veneta, não pinto mais."

*

Da mesma forma que não idealiza a

velhice, não o faz com a infância.

"Criança sofre muito. É todo um

processo de civilização, de coerção e

de enquadramento em cima delas. E

isso é uma agressão violenta", diz.

"Quando ouço alguém dizer que a

infância foi a parte mais feliz de sua

vida, olho com muita desconfiança.

Deve ter sido tão terrível que nem se

lembra."

*

A avó Fernanda é presente, quando

possível e sem culpas, na vida dos

três netos. "Estamos juntos nos

aniversários, aos domingos, quando

se consegue. "

*

Não tem e-mail. "Ainda gosto de

escrever à mão. Não me iniciei nesse

mundo de Facebook, internet. Acho

fantástico. As fronteiras acabaram. É

o ser humano solto, indomável." Usa

minimamente o celular. "Se ele puder

ficar desligado, prefiro."

*

Sem saudosismo. "Não vivo no

passado." É só elogios à nova versão

de "Guerra dos Sexos", onde aparece

em retratos ao lado de Paulo Autran.

"Foi a única vez em que trabalhamos

juntos, uma dupla que se fez muito

feliz." Ela ressalta não se tratar de

"remake". "É outra brincadeira. O

elenco é espetacular."

*

Fala com orgulho da geração de sua

filha. "É um grupo de atrizes

extremamente talentosas e

poderosas, com uma folha de

serviços de quem não está brincando

na vida. Isso dá uma visão

imorredoura da profissão."

*

Volta a se emocionar ao falar de

legado: "Nada é mais importante do

que meus filhos e netos. Eles

justificam a minha vida. Algo meu vai

estar lá no fim deste século. Se eles

procriarem, parte minha restará

pelos milênios afora. Penso muito

nessa cadeia de seres que foram se

sucedendo e chegaram até mim. Não

parei a corrente".

*

Para encerrar a conversa no café do

lobby do hotel em Porto Alegre, onde

se hospedou nas três semanas de

gravação, ela recusa o título de "a

grande dama do teatro e da tevê".

"Isso é bobagem, um resquício do

século 19. Como estamos no século

21, e já se passou um século inteiro,

deram uma acalmada nisso."

Nenhum comentário:

Postar um comentário